STF e Cotas: Um precedente para a Utopia
O Julgamento da constitucionalidade das Cotas pelo Supremo Tribunal
Federal (STF) enterrou os argumentos daqueles que, nos últimos anos, militaram
incansavelmente na tentativa de impedir a conquista e ampliação de direitos da
população negra brasileira. E mais que isso: as análises dos Ministros colocaram
a centralidade da questão racial como estruturante das desigualdades sociais no
Brasil. Mais que um precedente jurídico fundamental para o avanço de novas
legislações que visem a reparações históricas, a defesa e a decisão pela
constitucionalidade das cotas formulada a partir da mais alta corte de Justiça
do país é a conquista de um precedente para a utopia.
No entanto, embora represente uma grande vitória e, com certeza, a
inauguração de um novo patamar para a luta antirracista no Brasil, a decisão do
STF tratou-se de mais uma batalha apenas. A guerra contra o racismo e as
desigualdades sociais de maneira geral está longe de ser vencida. Não há um
desencadear de efeitos práticos imediatos a partir dessa decisão. Este
histórico acontecimento deve servir ao Movimento Negro como combustível para
mobilização e luta por avanços reais.
É sempre bom lembrar que oferecer igualdade de condições não significa
nada se, paralelamente, não for garantida a igualdade no acesso às oportunidades.
Há ainda pela frente uma dura batalha contra o racismo e seus estigmas, que
ainda fazem os negros serem barrados e/ou hostilizados nos diversos espaços de
sociabilidade, sobretudo no mercado de trabalho. A escola como um todo – em
especial a universidade, que pode estar prestes a se abrir para a diversidade –
tem o dever pedagógico de ajudar a criar uma nova mentalidade na qual a cor da
pele e as características físicas não estejam relacionadas a qualidades morais.
Neste sentido, há de se questionar, ainda a partir dos
pressupostos jurídicos, políticos e históricos, proferidos pelos senhores
ministros do STF, a efetividade da Lei 10.639/03 ou do Estatuto da Igualdade
Racial, que trazem em si muito mais valor simbólico do que uma efetiva garantia
de diretos ou uma mudança real para a vida da população negra do Brasil.
O momento também é oportuno para se questionar e impor
limites ao caráter letal ou excessivamente repressivo das abordagens policiais,
cujo alvo preferencial é a juventude negra. O número de homicídios cometidos
por policiais contra essa parcela da população é de proporção três por um, se
comparado aos não-negros. Isso quando não é, “por sorte”, encarcerada em
penitenciárias e internatos em condições sub-humanas. Drogas, desemprego,
precariedade de moradias e das condições de saúde, como bem sabemos, atingem
também de maneira especial esse grupo específico. Isso tudo fruto de uma
história de violência e opressão que só poderá ser minimizada a partir de
políticas de reparação histórica, debate esse que o Estado Brasileiro –
estruturalmente racista – jamais se propôs a fazer.
Incentivo para lutar mais!
Não se pode perder de vista o fato de a decisão do STF não obrigar, mas apenas
autorizar as universidades a implantarem programas que busquem reduzir ou até
mesmo eliminar as desigualdades raciais. Sob o argumento da autonomia
universitária, as instituições mais elitizadas continuam com sua postura
arrogante e subserviente aos interesses da classe dominante. Em São Paulo , por exemplo,
as três maiores universidades (USP, UNESP e UNICAMP) já declararam a
impossibilidade da adesão às cotas por sua própria iniciativa (http://migre.me/8UI0x). No máximo,
utilizam de subterfúgios frágeis no sentido de formular “alternativas” para o
acesso de camadas excluídas aos bancos universitários, tais como o Inclusp e
outras iniciativas que comprovadamente resultam em efeitos nulos ou
irrelevantes.
Assim, não há alternativa, senão a pressão popular. Um primeiro alvo
dessa mobilização deve ser a retomada da campanha pela aprovação do PL 180/2008
(http://migre.me/8UHEQ), que prevê cotas para estudantes de escolas públicas,
pobres e negros em universidades públicas. O projeto segue engavetado na
Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado. A partir da decisão do STF
não há justificativa para que o projeto não seja aprovado pelas casas
legislativas e sancionado imediatamente pela presidenta Dilma. A conquista
desse precedente jurídico deve nos servir também para embasar ações no sentido
de, por exemplo, alcançar a mesma vitória no que diz respeito à
constitucionalidade do decreto 4887, questionado pela ADI-3239, também do DEM,
que tenta impedir a titularidade dos territórios quilombolas.
Ao confirmar a constitucionalidade das cotas e das ações afirmativas da
maneira contundente – no placar e no conteúdo das justificativas -, como foi, se
desenhou a contraditória situação: A voz da justiça burguesa e conservadora
dirigida ao estado e seus pares dizendo: “Iniciativas
e regulamentações que visam garantia da presença negra em universidades, no
mercado de trabalho e nos espaços de poder são legais, morais e legítimas. E todo o seu contrário é fruto
da herança escravocrata e racista.” Com a palavra, reitorias, conselhos universitários
e o parlamento brasileiro.
Douglas Belchior
Professor de História e Sociologia da Rede Pública
Estadual de SP
Membro do Conselho Geral da UNEafro-Brasil
Membro do Conselho Geral da UNEafro-Brasil
Facebook: Douglas Belchior
Email: negrobelchior@gmail.com
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